sábado, 21 de fevereiro de 2015

Intrusa

Era uma sexta-feira. Trabalhou muito, estava cansada, estressada. Merecia alguma diversão. Saiu com os colegas do trabalho. Só umas duas horinhas, algumas cervejas e iria pra casa. 

No bar, a conversa estava boa. A cerveja estava boa. As horas foram passando. O cansaço aumentava, mas a vontade de ir embora ficou esquecida. 

Alguém sugeriu uma festa. Sim, uma festa rolando ali perto, música boa, que tal? Por que não?

E lá foi ela. E dançou, conversou, bebeu mais. 

Estava tudo ótimo, muito divertido, mas o cansaço bateu forte. Junto com a bebida, foi demais. Dor de cabeça e agora sim, uma vontade absurda de ir pra casa.

Pegou um táxi e foi embora. No elevador, olhou o relógio. Três horas da manhã! Não tinha visto o tempo passar... Estava tonta, bêbada, morrendo de sono e apertada pra fazer xixi!

Entrou no apartamento e nem acendeu as luzes. Passou pelo quarto, correu pro banheiro, sentou no vaso sanitário. Então se deu conta: tinha alguém deitado na sua cama!

Levantou, vestiu a roupa e olhou pela porta do banheiro. O quarto estava escuro, mas dava pra ver a cama vazia. Exatamente como foi deixada pela manhã. 

É, estava muito bêbada. Lavou o rosto, se olhou no espelho. Nada atraente! Agradeceu por não ter encontrado ninguém interessante na festa. Do jeito que ela estava, não teria sido uma boa ideia.

Então, ouviu passos. A primeira reação foi de susto. Mas aí lembrou do quanto bebeu, e continuou a divagar sobre sua (falta de) beleza na frente do espelho. 

Outro barulho. Como se alguém tivesse esbarrado num móvel, numa cadeira. Não é possível! Que que tinha naquele drink???

Foi pro quarto, sentou na cama. Tirou os sapatos, massageou os pés. Teve a impressão de ouvir vozes. 

Agora já estava ficando nervosa... levantou e começou a andar de vagar. Viu uma luz vindo da sala, intermitente, fraca. Chegou na porta do quarto e espiou. A televisão estava ligada.

O nervosismo virou medo. Como a televisão estava ligada se quando ela entrou estava tudo apagado e não tinha mais ninguém ali???

Parou, respirou fundo, tentou recobrar alguma sanidade. Poderia ter pisado no controle remoto quando passou a caminho do banheiro. Foi isso! Claro!

Foi até a sala tropeçando. As pernas tremiam, já não sabia se por causa da bebida ou do nervoso. Olhou em volta e achou o controle no sofá. 

Confusa, pegou o controle e olhou imóvel para a televisão. A imagem não fazia sentido. Não era um filme, uma novela, um programa. Estava fora de sintonia, borrada, mas parecia ser o apartamento. Reconheceu, entre um borrão e outro, o sofá, a mesa, as cadeiras e até a própria TV!

O coração disparou e ela apertou o botão de desligar. A imagem sumiu.

Com a sala mergulhada novamente na escuridão, percebeu que a luz da cozinha estava acesa. Sem as vozes que vinham da TV, ouviu os sons que vinham de lá. Podia jurar que tinha mais alguém na casa!

Mesmo apavorada, seguiu para a cozinha. Devia estar mesmo bêbada, isso era um sonho, um pesadelo na verdade.

Parou na porta, ainda segurando com força o controle da televisão. Queria chorar, mas teve medo de fazer algum barulho. Fechou os olhos e abriu novamente, esperando acordar no sábado de manhã, deitada na cama, com uma baita ressaca. Mas ela ainda estava ali, de pé, tremendo e com o coração disparado. Morrendo de medo e sem saber o que fazer.

Mais um passo, entrou na cozinha. De costas, uma mulher com uma de suas camisolas. Ela não pareceu se incomodar com sua presença. Na verdade, pareceu nem perceber.

Seria uma louca, uma psicopata? O cabelo parecia igual ao dela, liso, castanho, mesmo comprimento. A cor da pele era a mesma, o mesmo biotipo. Que coisa estranha!

Esfregou os olhos. A imagem perturbadora continuava lá. 

A mulher começou a se virar e agora ela estava quase desmaiando. Não podia acreditar naquilo, não podia!

De repente, a mulher pareceu perceber sua presença. Congelou o movimento, ficou parada, rígida. Dava pra perceber sua respiração acelerando e suas mãos tremendo.

Ela já não conseguia conter a ansiedade, deu um passo a frente e pigarreou. Uma coragem a invadiu e ela adotou uma postura desafiadora. Parou e esperou.

A invasora foi virando bem devagar, insegura, tremendo, chorando.

Então ficaram frente a frente e ela se viu, sem maquiagem, de camisola, o cabelo solto. O olhar apavorado, a boca entreaberta num choque. 

Primeiro ficou confusa, depois nervosa, então com muito medo. 

Um grito de terror. Depois outro. Depois o silêncio e a escuridão. 

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

No Estacionamento

Saíram do cinema tarde. Era a última sessão e o shopping já estava fechando. O estacionamento estava deserto. Poucos carros, ninguém por perto, silêncio. Ouviam apenas os próprios passos e o som de sua respiração.

Distraídos, andavam calmamente, tentando lembrar onde haviam deixado o carro. De repente, tiveram a impressão de ouvir um riso de criança. Bem baixinho, bem ao longe. Pararam, prestaram atenção. Nada. Silêncio outra vez.

Deve ter sido só impressão, pensaram. Talvez um ruído dentro do shopping, ou na rua, ou em outro andar do estacionamento. Ele a envolveu nos braços e a beijou. Ficaram ali por um momento, rendidos pela sensação de abandono. Estavam sozinhos no mundo, sem pressa. O universo era deles.

Olhos fechados, lábios selados num intenso beijo. Uma sensação estranha, um arrepio. Ambos abrem os olhos ao mesmo tempo, procurando quem passou por ali. Alguém passou correndo, eles sentiram! E, novamente, risos de criança.

Cadê meu carro, ele pergunta já sem muita paciência. Tenho certeza de que estacionei por aqui! Ela concorda, mas o carro não está lá. E eles ouvem os risos outra vez.

Agora mais próximos, mais altos. Mas eles não sabem de onde vêm. Parecem vir de todas as direções, ecoar pelas paredes de concreto, cercá-los num furacão de gargalhadinhas sinistras.

Já não conseguem mais lembrar de onde vinham. Esse estacionamento era assim tão grande??? Ela sugere voltar ao shopping, ele mostra que já não há entradas visíveis. Parecem estar longe, muito longe de tudo.

As luzes estão falhando? Parece que está ficando escuro... e frio. E os risos aumentam e se aproximam. E agora eles não veem nem carros. Tudo está completamente deserto.

Estão abraçados, ele tentando protegê-la nos braços. Ela treme de medo, a respiração ofegante. Não pode ser! Isso parece um pesadelo, uma merda de um pesadelo! Isso não está acontecendo!

Passos. Eles ouvem passos. Finalmente alguém vai aparecer e tudo vai voltar ao normal! São passinhos leves e hesitantes. Eles olham na direção do som, ansiosos.

Tem uma parede. De trás da parede, vem rolando pelo chão uma bola. Devagar, a bola vermelha desliza pelo chão enquanto todo o ruído cessa e os passos simplesmente param.

Eles também param. Imóveis, assistem à cena como se já não estivessem ali. Completamente confusos, petrificados pelo medo.

Ela fecha os olhos, ele diz precisamos sair daqui. Ela não consegue se mover, ele diz vamos!

Os passinhos leves agora estão correndo e, de trás da parede, surge um menino. Ele corre pra pegar a bola, mas para no caminho e olha pra eles.

É um menino bem jovem, deve ter uns cinco ou seis anos. É branco, pele bem clara e tem cabelos curtos e loiros, ao que parece. Sua imagem não está muito clara, eles precisam forçar a visão para enxergá-lo. Ele levanta a cabeça e olha na direção deles. Seus olhos são completamente negros.

Nos segundos que se passam, eles reconhecem a famosa vítima de um trágico acidente no estacionamento do shopping, alguns anos antes. O menino que foi atropelado ao atravessar correndo para pegar sua bola. Leram sobre o caso e viram fotos no jornal. O culpado conseguiu fugir sem prestar socorro e a criança morreu ali, em meio a muito sofrimento.

Enquanto tudo se esclarece, a luz vai sumindo, o ar parece acabar e eles sentem uma pressão muito forte a sua volta. Isso é loucura, ele grita.

O menino olha fixamente para eles e o som dos risos volta forte e alto, vindo de todas as direções.

Ai, meu Deus! Ela chora e reza ao mesmo tempo, enquanto ele diz merda, que merda é essa, mas também começa a chorar. Ele a aperta nos braços.

Tudo fica escuro, muito escuro. Eles têm a sensação de estarem sendo sugados para outra dimensão. Dor e medo. E escuridão. Um último grito dela e então nada.

Enquanto isso, os outros clientes da última sessão de cinema circulam pelo estacionamento. Param pra conversar, os que vieram em grupo se despedem, cada um pega o seu carro e segue em frente. Ninguém sequer imagina o que está acontecendo ali. A noite segue seu rumo e um carro fica abandonado na vaga bem em frente à saída do shopping. Seus donos jamais foram encontrados.