domingo, 29 de julho de 2012

O Velho


A noite estava fria e escura. Estava deitado no sofá, enrolado no edredom, assistindo televisão. Apesar do frio, aquela noite lhe parecia agradável.

Então, a campainha tocou. Ficou aborrecido por alguém estragar o seu sossego, sua noite perfeita, relaxante, depois de um longo dia de trabalho. Pensou em não atender, mas a pessoa insistiu. Resolveu ver quem era.

Olhou pela janela e, lá embaixo, em frente ao seu portão, estava um senhor de idade. O velhinho parecia pobre, suas roupas estavam rasgadas e ele tremia de frio. Sentiu-se culpado e resolveu descer.

Quando abriu o portão, sentiu pena do velho. Ele parecia realmente frágil e faminto. Numa voz que mal se podia ouvir, perguntou se ele poderia lhe oferecer algo para comer. Disse que não tinha onde dormir, não tinha agasalhos e estava faminto.

Nunca foi um sujeito muito caridoso, mas algo no olhar daquele velhinho tocou seu coração. Lembrou que sua empregada tinha preparado uma sopa de ervilhas e que tinha sobrado um pouco. Achou que não teria problema se o velho se acomodasse na varanda e ele lhe servisse um prato de sopa.

Ao ouvir a oferta, o mendigo pareceu incrédulo. Disse que não precisava entrar na casa, que bastava a sopa, ele encontraria abrigo em algum lugar. A simplicidade e humildade daquelas palavras tocaram seu coração e ele insistiu para que o velho entrasse e se acomodasse numa das poltronas da varanda.

Subiu, esquentou a sopa, serviu numa bandeja com um pedaço de pão, pegou um edredom velho e levou tudo para o seu “hóspede”. O velhinho ficou muito feliz e grato, se enrolou no edredom e começou a tomar a sopa com muito prazer, como se aquilo fosse um banquete. Tocado pela cena, ele se sentou na cadeira ao lado e começou a conversar, querendo conhecer a história daquela pessoa que, de alguma maneira, conseguiu despertar seu senso de caridade.

Conversaram durante um bom tempo. O velho terminou a sopa, o pão, bebeu água. Parecia realmente inofensivo, e ele resolveu oferecer o abrigo da varanda para que seu hóspede passasse a noite. Poderia dormir num confortável sofá de futon, ficaria abrigado do frio e da chuva, e estaria em segurança. Pela manhã, poderia tomar um café e então seguir sua vida.

O velhinho ficou muito agradecido. Lágrimas brotavam de seus olhos, enquanto ele repetia bênçãos ao seu “salvador”. Foi até o sofá, mancando, e se deitou bem devagarinho, tentando se cobrir com o edredom. Diante da dificuldade do velho, ele resolveu ajudá-lo a se cobrir. E, num gesto completamente surpreendente, até para si mesmo, abaixou para beijar sua testa.

Então, o velho passou os braços em volta do seu pescoço e o abraçou apertado. Surpreso, ele retribuiu o abraço, até sentir uma ardência no pescoço. Então, já era tarde demais... as presas já estavam cravadas na sua jugular e tudo era escuridão.

Ali, naquela noite fria e escura, o corpo do velho secou como a folha que cai de uma árvore no outono, enquanto o homem que o acolheu renascia como jamais pensou ser possível.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

A Casa

Morava ali não havia muito tempo quando aquelas coisas estranhas começaram a acontecer. No início, achou que era o cansaço. Vinha trabalhando muito, as coisas no escritório estavam pegando fogo. Quase não dormia, acordava muito cedo, mal tinha tempo de comer. É fácil confundir a realidade quando a mente está tão cansada.
 
Mas aí o tempo passou e as coisas começaram a melhorar. Veio um feriado daqueles ótimos pra descansar e ela dormiu bem, colocou a cabeça no lugar. Estava renovada quando, na segunda noite daquele feriadão perfeito, escutou os tais barulhos que a incomodavam. E agora não tinha desculpa. Estava mesmo ouvindo alguma coisa.
 
Não é que fosse uma coisa sobrenatural. Parecia mais com ratos, talvez. Era um som de alguma coisa roçando no chão? Na parede? No teto? Talvez fossem morcegos presos entre o telhado e o teto da casa...
 
Resolveu levantar da cama e investigar. Queria saber de onde o som vinha.
 
Andou pela casa inteira, mas aqueles barulhos pareciam ecos, vindos de todos os lugares ao mesmo tempo. Com o tempo, o som foi ficando mais definido e, com isso, mais parecido com o arrastar de pés. Talvez estivesse com medo. Talvez estivesse imaginando coisas.
 
Parou, respirou. Tentou aguçar a audição ao máximo, e então conseguiu perceber a origem daquele barulho, que ficava cada vez mais alto. Ouvia gemidos e vozes abafadas vindo de uma parede?! Agora não parecia mais sonho, parecia bem real e estranho. Ela sabia que estava acordada e lúcida.
 
Foi para a área de serviço da casa, guiada pela audição. O barulho era cada vez alto e claro. Ouvia lamentos, passos, vozes. Quanto mais se aproximava da parede do fundo da despensa, mais certeza tinha de que era dali que o som vinha. Tocou a parede. Podia sentir uma vibração vindo de dentro dela, como se fosse oca. Nunca tinha reparado naquilo, mas agora percebia que aquela parede era bem fina. Socou e pareceu apenas madeira.
 
O desespero a dominava com tanta intensidade que ela deixou a razão de lado. Pegou um martelo e começou a bater na parede, abrindo um buraco. Então vieram os gritos e ela quase foi jogada pra trás por sombras que pareciam ter a densidade de corpos. Aquelas coisas vinham em sua direção numa atitude de súplica. Seu coração batia acelerado e sua respiração já falhava, quando tomou coragem para continuar. Acabou de derrubar a parede e entrou num cubículo escuro, em meio àquelas sombras.
 
A luz da despensa penetrou o lugar, para revelar um amontoado de corpos decompostos, alguns dos quais já desfeitos em restos de ossos.

sábado, 21 de julho de 2012

O Presente

Estavam casados há oito anos e, há pelo menos cinco, tentavam desesperadamente ter um filho. Eram apaixonados e felizes, tinham conquistado muitas coisas juntos, e queriam mais. Queriam dar mais um passo, queriam concretizar e eternizar seu amor numa vida que surgiria de sua união.
 
Apesar do tempo, ainda viviam em clima de lua-de-mel. Mas a frustração começava a tomar conta de seus corações depois de tantas tentativas fracassadas. Buscaram ajuda de vários especialistas, fizeram os mais modernos tratamentos, e nada acontecia... Começam a cogitar a adoção, mas queriam tanto um fruto gerado de seu amor...
 
Então, depois de tanto tempo, decidiram que aquele seria o último ano. Fariam de tudo durante aqueles doze meses. Caso não desse certo, logo em janeiro procurariam entrar na fila de adoção. Estava combinado.
 
E foi logo no começo do ano, num dia ensolarado, quando passeavam por um parque, que aconteceu o que parecia ser um milagre. Passaram por uma cigana, dessas que ficam perambulando por lugares públicos, à procura de alguém que aceite seus serviços. Como a maior parte das pessoas, sempre desviavam. Mas a cigana foi mais rápida e segurou a mão dela. O marido olhou, em tom de repreensão, mas a cigana se apressou em declarar que eles queriam muito um filho, mas todas as tentativas tinham fracassado. Disse que tinha a solução para eles.
 
O casal trocou um olhar e ambos perceberam aquilo como um sinal divino. Em outras circunstâncias, não teriam dado atenção. Mas o desespero tomava conta de seus corações e eles precisavam de algo no que acreditar. Pararam para ouvir a cigana.
 
A mulher parecia idosa, usava um traje bastante tradicional, com lenços, colares, pulseiras e vários anéis. Seu olhar parecia cansado e sábio. Olhos de quem já tinha vivido muito e visto muita coisa. Algo nela despertava confiança e logo sentiram-se totalmente seduzidos pela senhora que parecia enviada para acabar com seus problemas.
 
Depois de segurar as mãos do casal por um tempo que lhes pareceu um tanto longo, a cigana examinou suas linhas e tocou suas testas. Então, entregou-lhes um cartão que continha um nome e um endereço. Disse-lhes que era seu mestre, um homem muito sábio, uma espécie de mago, capaz de preparar poções e rituais para as mais diversas finalidades. Ele não tinha telefone e não necessitavam marcar consulta. Bastava aparecer no endereço do cartão e Shmael os atenderia.
 
Continuaram o passeio evitando o assunto, mas logo o dia ensolarado perdeu a graça e tudo o que queriam era discutir sobre o que tinha acabado de acontecer. Voltaram pra casa e só então começaram a digerir as informações. Era inegável que a mulher tinha algum dom. Acertou tudo o que se propôs a adivinhar. Transmitia confiança e bondade. Mas tudo era estranho demais para ser verdade.
 
- E se for Deus atendendo às nossas preces? E se for assim que Ele trabalha, através de pessoas que estão por aí, ao nosso alcance? – ela perguntou, com lágrimas nos olhos.
 
Ele não estava convencido, mas não queria contrariar sua esposa, já tão fragilizada. Combinaram que, no próximo sábado, logo pela manhã, iriam ao tal endereço. Afinal, não custava arriscar.
 
A semana demorou a passar. Ambos estavam mergulhados em ansiedade e mal conseguiam se concentrar nos seus trabalhos e afazeres cotidianos. Então, sábado chegou. Ela foi a primeira a acordar. Mal dormiu, para falar a verdade. Logo em seguida ele acordou e lhe ofereceu um sorriso. Tomaram o café da manhã em silêncio, se arrumaram e seguiram para o endereço do cartão, ao encontro do tal Shmael, sua última esperança.
 
O endereço era em um bairro afastado do centro, a caminho da região mais “rural” da cidade. Em determinado ponto, precisaram sair da rodovia principal e pegar uma estrada de terra batida. No final da estrada, para sua surpresa, erguia-se uma enorme mansão.
 
À distância, a casa parecia ter uns três andares e centenas de metros quadrados. Ficava atrás de um pesado portão de ferro. Estava em perfeitas condições e não se encaixava naquela vizinhança simples, por assim dizer.
 
Seguiram de carro até o portão, onde ele saltou. Encontrou uma espécie de interfone no portão e apertou o botão. Uma voz cavernosa perguntou o que desejava. Ele se apresentou e a voz respondeu que Shmael os esperava, que o portão seria aberto para que seguissem de carro até a entrada principal da casa. E assim fizeram.
 
Quando saltaram do carro, um homem já os esperava na porta. Era alto, magro, usava um terno preto todo trabalhado com bordados e brilhos. Os cabelos lisos e negros estavam presos numa trança e um lenço estampado em tons de roxo e vermelho caía sobre seus ombros. Seu olhar era penetrante e, ao mesmo tempo, parecia vazio. Era difícil determinar sua idade. Ele sorria.
 
- Olá. Sou Shmael. Carmita me falou sobre vocês e creio ter a solução. Entrem e, por favor, sintam-se em casa.
 
Algo naquela voz era assustador e sedutor ao mesmo tempo. Sentiam-se como que hipnotizados. Entreolharam-se desconfiados num primeiro momento, mas logo deixaram-se envolver pelo encanto do casarão e atravessaram a porta de entrada.
 
Shmael os guiou até uma enorme e luxuosa sala de estar, onde foram convidados a sentar. O mordomo apareceu oferecendo bebidas, que eles prontamente aceitaram. Então, depois de repetir a história que a cigana lhe contara, com sua voz muito peculiar, aquele estranho homem pediu que contassem sua versão dos fatos.
 
Carmita havia acertado tudo e só faltavam alguns detalhes que realmente não tinham muita importância. Mesmo assim, repassaram toda a sua história, desde o namoro. Todos os desejos e planos, tentativas e fracassos. Shmael sorria ao lhes dizer que sim, tinha uma solução. Podia garantir que ela sairia dali grávida, mas precisava que confiassem nele. Totalmente.
 
Pediram um tempo para pensar e foram deixados a sós. Estavam inseguros, mas não queriam perder nenhuma chance. Trocaram um demorado beijo e decidiram que estavam prontos a arriscar qualquer coisa.
 
Após um tempo, Shmael apareceu na sala. Disseram que estavam prontos e ele pediu que o seguissem até o andar superior.
 
Lá, foram levados cada um para uma suíte, acompanhados por pessoas vestindo uma longa capa com capuz. Pediram que tirassem as roupas e entrassem numa imensa banheira, cheia de pétalas de flores e cercada por velas. Após algum tempo, foram retirados do banho e untados com um óleo de perfume adocicado. Receberam massagens daquelas pessoas, por todo o corpo e depois foi dado uma espécie de roupão para cada um. Ambos estavam estranhando aquela experiência e estavam inseguros, pois não sabiam o que estava acontecendo no outro quarto. Mas a música suave que vinha de algum lugar indecifrável envolvia suas mentes e foram relaxando cada vez mais.
 
Antes de poderem sair de seus respectivos quartos, receberam uma taça cheia de um líquido, que foram orientados a beber, sem deixar sobrar nada. O copo dele continha algo parecido com água, mas com um gosto diferente. Sentiu-se meio tonto e desorientado após beber, mas ao mesmo tempo, excitado. O copo dela continha um líquido mais viscoso e era doce. Também se sentiu desorientada e excitada, mas sentiu algo diferente. Um calor invadiu seu corpo e, por alguns momentos, ela perdeu a memória.
 
Então, finalmente, estavam prontos para o reencontro. Os criados encapuzados os uniram no longo corredor e pediram que dessem as mãos. Assim, seguiram até a última porta, coberta de símbolos dourados que, naquele momento, nenhum dos dois conseguiu decifrar.
 
O aposento era amplo, parecia coberto de mármore escuro e tinha forma arredondada. No centro, havia uma elevação e, sobre ela, uma espécie de cama com dossel vermelho. Nas paredes, havia tochas presas, velas enfeitavam o chão, ao redor de todo o lugar, e várias daquelas pessoas encapuzadas entoavam cânticos, paradas como estátuas ali dentro.
 
Shmael surgiu no centro do aposento e os convidou a entrar. Nenhum dos dois sentia-se em condições de avaliar a estranheza do que estava diante de seus olhos. Àquela altura, ambos acreditavam estar num sonho. Sentiam-se leves, prestes a flutuar, e estavam prontos a obedecer qualquer ordem vinda daquela voz distante e peculiar, quase uma melodia aos seus ouvidos.
 
Entraram, seguiram para a cama e, alheios aos estranhos presentes no aposento, fizeram amor. Imediatamente ela pode sentir que estava grávida. Algo tinha mudado em seu organismo, ela sabia. Dormiram abraçados.
 
Muitas horas depois, cada um acordou no aposento onde tinham sido preparados anteriormente. Já vestiam suas próprias roupas. Tinham a sensação de ter dormido por várias horas, não conseguiam lembrar muito bem dos detalhes, não entendiam bem aquilo ali, mas a sensação de ter valido a pena os dominava.
 
Ao mesmo tempo em que um criado abria a porta do quarto dele, outro abria a porta dela, para ajudá-los a levantar, e encaminhá-los até a sala de estar, onde Shmael os aguardava.
 
- Quanto devemos ao senhor? – ele perguntou, certo de que teria de pagar uma fortuna.
 
- Por enquanto, nada – respondeu Shmael. – Vocês são um casal muito especial, que me procurou precisando muito de ajuda. Se tudo sair realmente conforme os meus planos, este filho será meu presente para vocês.
 
Ele ainda insistiu que Shmael aceitasse, pelo menos, o valor relativo aos gastos que teve. Mas lhes foi dito que não se preocupassem e fossem felizes. Com esta benção, partiram para o carro, para a “vida normal” outra vez.
 
No dia seguinte o teste de gravidez confirmou o que ela já sabia. E, para surpresa do casal, desta vez o bebê sobreviveu. A gravidez transcorreu sem problemas e eles experimentaram uma felicidade que havia muito não sentiam.
 
Foi só durante a última ultrassonografia antes do parto que experimentaram mais uma vez a apreensão: aparentemente o bebê tinha alguma má formação no crânio, que fazia com que seu formato fosse um pouco diferente do normal mas, o médico garantiu, não era nada grave nem nada que afetaria seu desenvolvimento. Talvez até fosse naturalmente corrigido com o tempo, afinal parecia se tratar de um problema puramente estético. Acreditaram que isso era pouco para estragar sua felicidade. Teriam um filho, afinal, e nada poderia diminuir sua alegria.
 
Então, chegou o dia do parto. A bolsa estourou e eles correram para a maternidade, radiantes. Ela foi preparada e levada para a sala de cirurgia. Ele a acompanhou, câmera na mão e um sorriso enorme estampado no rosto. Médico, enfermeiros, assistentes, anestesista, todos estavam a postos. Tudo pronto para o que seria o dia mais feliz da vida deles.
 
A cabecinha do bebê coroou, ela fez força, empurrou, o médico delicadamente puxou e ele filmou quando aquela criaturinha saiu do ventre da sua esposa, coberta de placenta, sangue e tudo aquilo que um parto envolve. Estava tudo perfeito.
 
Foi só quando o bebê foi colocado ao lado da mãe, depois de uma rápida limpeza, que eles perceberam: além do cordão umbilical, um outro “fio” saía da criança, mais precisamente da altura de seu cóccix. A pequena deformação no seu crânio, na verdade, eram dois pequenos chifres. Seus olhos eram vermelhos como o sangue e fitavam a mãe com uma intensidade da qual bebês não são capazes. Quando abriu a pequena boquinha, notaram que já tinha dentes, bastante afiados.
 
Chocados, todos ficaram paralisados. O pai deixou cair a câmera, o médico largou a tesoura, os enfermeiros afastaram-se. Em questão de segundos, onde antes havia o rosto da mãe, agora só se via uma poça de sangue.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Pata de Bode

Nasci e cresci numa pequena cidade do interior. Ao longo da minha infância, passava as noites em volta da fogueira, no quintal de casa, com as outras crianças e os adultos da família e da vizinhança contando histórias e lendas, tentando nos assustar.
 
Sempre fui muito arteiro, entrava mato adentro no meio da noite para pregar peças nos meus amigos, roubar frutas na vizinhança, ou simplesmente para passear mesmo. O gostinho de perigo e da proibição me atraía. Adorava desafiar meus pais, fingir que estava dormindo e sair depois que eles se deitavam. Coisas de criança.
 
Uma das lendas que nos contavam, dizia que existia um ser maligno com patas de bode e corpo de homem, que devorava as crianças arteiras à noite. Confesso que nos primeiros anos de minha infância eu tinha medo. Depois, fui ficando curioso e cheguei a tentar montar armadilhas para o Pata de Bode com meus primos e amigos. Nunca o pegamos nem fomos pegos por ele e aquela lenda foi perdendo o sentido com o tempo. Assumi que era apenas um meio de tentar controlar as crianças.
 
Aos dezoito anos deixei o interior para estudar e trabalhar na cidade grande. Minhas preocupações e medos mudaram, as histórias e lendas também, e nunca mais pensei no Pata de Bode.

Até que, trinta anos após ter deixado a casa de meus pais, voltei ao interior pela primeira vez, para o velório de minha mãe. Ao longo desse tempo, sempre foram meus pais que vieram me visitar na cidade, e eu nunca mais tinha posto os pés na minha terra natal.

Ainda na estrada que levava à minha antiga cidade, fui arrebatado por uma emoção estranha. Talvez fosse a tristeza por saber que não encontraria minha mãe ao chegar. Talvez fosse a saudade dos velhos tempos. Talvez fosse um certo arrependimento por ter deixado aquilo tudo pra trás com tanta facilidade. Mas havia algo me incomodando bastante, mesmo que eu não soubesse exatamente o que era.

Fiquei hospedado na minha antiga casa, no meu antigo quarto, que ainda conservava o mesmo aspecto de quando o deixei, a não ser por uma ou outra coisa que tinha sido armazenada ali por falta de espaço no resto da casa. Acho que minha mãe sempre esperou que eu voltasse um dia, e acabei voltando tarde demais.

O velório durou o dia inteiro e o enterro foi ao entardecer. Revi vários parentes e amigos de infância, pessoas que tinha guardado no fundo da memória, pra não dizer “esquecido”, com minha nova vida, minha nova realidade.

À noite, sem conseguir dormir, resolvi dar uma volta pela vizinhança, como fazia nos velhos tempos. Andei pelo quintal, agora muito mais cheio de mato, bem malcuidado, abandonado. Meu pai não tinha mais forças para trabalhar e tenho a impressão de que a doença de minha mãe drenou o que restava dele.

Sentindo-me cada vez pior, vaguei pelo matagal que crescia nos fundos da casa, indo em direção ao bosque. Ali, sozinho no meio da noite escura, lembrei das fogueiras, das histórias, das lendas. Pensei que não fui um bom menino, um bom filho, e lembrei do Pata de Bode pela primeira vez em anos. E, para minha surpresa, senti medo. Acho que tinha perdido o costume da escuridão e da solidão absolutas. Na cidade sempre havia uma luz, uma TV ligada, alguém por perto, nem que fosse através da internet.
 
Após um tempo, tive a impressão de estar sendo observado, pensei ter ouvido uma respiração. Por um momento, posso dizer que fiquei apavorado. Então, como homem adulto que era, parei, refleti, e concluí que estava cansado pela viagem e abalado pelos acontecimentos. Estava imaginando coisas e precisava descansar. Voltei para casa e tratei de dormir.

O dia seguinte transcorreu sem grandes acontecimentos. Aproveitei pra rever todos, conversar, tentar me redimir pelo tempo que passei afastado. Fui bem tratado por todos e me senti surpreendentemente feliz, apesar de tudo. Parecia que as coisas iriam ficar bem, afinal.

O céu escureceu, as estrelas brilharam e me lembrei do que se passou na noite anterior. Confesso que, apesar das minhas explicações científicas, fiquei intrigado com a sensação que tive. É lógico que, como morador de cidade grande, a primeira coisa que me passou pela cabeça foi que alguém poderia estar rondando a casa de meus pais, a fim de roubar, talvez, as jóias de família que minha mãe guardava. Achei que valia uma investigação e saí pela noite outra vez.

Muito mais bem equipado desta vez, levei uma lanterna e um cabo de enxada, a única “arma” que encontrei na casa. Olhei toda a extensão do quintal, tentando enxergar o máximo que podia, com a fraca luz da lanterna, e não vi nada que me chamasse a atenção. A curiosidade falou mais alto e, além do mais, eu estava acostumado a dormir de madrugada e não às dez horas da noite! Queria um pouco de emoção. Entrei no bosque.

Novamente tive a sensação de estar sendo observado. Sabe quando você consegue sentir o calor do olhar de alguém na sua pele? Eu sentia isso, como se alguém me olhasse fixamente, mas não conseguia ver nada naquela escuridão. Tive a impressão de ouvir um farfalhar no mato atrás de mim e senti meus pelos crisparem. Tentei mirar a lanterna na direção do barulho, mas parecia estar tudo completamente deserto. Desisti depois de algum tempo, um pouco por desapontamento, um pouco por medo. Não sei dizer qual falou mais alto e me senti um tanto idiota por ser um homem de cinqüenta anos com medo de histórias de criança, mas decidi voltar pra casa e dormir mais uma vez.
 
Eu deveria partir no terceiro dia, mas decidi ficar mais um pouco. Meu pai estava muito abatido e era nítido que precisava de mim. Achei que poderia, de alguma maneira, compensar os anos que passei afastado. Achei que devia isso à minha mãe, e decidi ficar até o fim da semana.

Na terceira noite, movido por uma curiosidade inexplicável, voltei ao bosque. Tinha chovido um pouco durante o dia e a terra estava fofa. Achei que procurar por pegadas seria um bom começo para a minha investigação.

Estava agachado no chão, analisando umas pegadas muito estranhas que encontrei, quando voltei a sentir o peso daquele olhar sobre mim. Desta vez, ignorei a sensação e continuei a olhar as pegadas, que não eram humanas. Embora fossem obviamente de um bípede, pareciam mais pegadas de cavalo ou outro animal com um formato arredondado de pata.

Não conseguia parar de pensar em todas as histórias que escutei quando criança. Tentei deixar de lado os pensamentos tolos, mas o farfalhar no mato me assustou e virei depressa, apontando a lanterna na direção. Tive a impressão de ver um par de olhos vermelhos. Sentindo-me como que hipnotizado, contrariei o bom senso e caminhei na direção dos olhos, apontando a lanterna.

Ouvi um som estranho um pouco mais adiante. Parecia um relinchar, mas definitivamente não era um cavalo. Ainda estava a uma certa distância da mata fechada quando consegui visualizar o que parecia ser um par de pernas cobertas de pelo de animal. Um pequeno vislumbre me fez pensar num bode e confesso que meu sangue congelou.

Fiquei paralisado até que enxerguei os dois olhos vermelhos me fitando à distância e o que parecia ser parte de um rosto, aparentemente humanóide, mas áspero, vincado, deformado. Neste momento, decidi que precisava correr.

Corri sem parar, ouvindo aquele galopar logo atrás de mim, a respiração pesada, raivosa, e um cheiro horrível se espalhando pelo ar. Alguns metros depois, tropecei e caí. Mal percebi a sombra por cima de mim, quando reuni toda a minha coragem e força para chutar aquela criatura. Só via os olhos vermelhos me fitando de um jeito sinistro. O pânico não me deixou ver mais nada e, assim que a criatura caiu com meu chute, levantei depressa e não parei até chegar ao carro. Por sorte, estava carregando a carteira e as chaves no bolso. Entrei, dei a partida e peguei a estrada sem olhar para trás. Quando chegasse à cidade, ligaria para o meu pai explicando a partida urgente, mas não ficaria mais nem um minuto ali, com o Pata de Bode atrás de mim.