domingo, 19 de janeiro de 2014

Desconhecido

Havia um tempo se sentia estranha. Não conseguia definir bem o que era. Algo como uma presença, uma sombra, um cheiro... algo que a acompanhava, mas que ela não via ou ouvia. Apenas sentia.

Sentia calafrios. Sentia um frio congelante mesmo quando o sol brilhava lá no céu. Nessas horas, ficava com medo. Não acreditava no sobrenatural, mas não controlava o medo quando sentia algo que parecia uma mão tocando seus cabelos muito de leve. Quem controlaria?

Começou a ter medo de escuro. Que infantil! Mas no escuro a presença era mais forte. Quando apagava as luzes da casa e ia se deitar, quase podia sentir alguém a acompanhando e deitando na cama com ela. Quase ouvia os passos, a respiração. Sentia a respiração na sua nuca!

Achou que estava ficando louca, mas não teve coragem de procurar ajuda. Era médica, respeitada como uma autoridade no campo da neurologia. Era professora de uma grande universidade, autora de diversas teses. Como poderia ser louca?

Achou que era o excesso de trabalho. O estresse de manter um consultório, algumas turmas na faculdade e ainda ser a neurologista chefe e acompanhar residentes num hospital. Andava dormindo pouco, comendo pouco. Era isso!

Mas, conforme o tempo passava, mesmo tentando não dar importância àquilo, a presença ficava mais forte. Ficava palpável. ­

Então começou. Primeiro foi a luz piscando. Trocou a lâmpada, claro! Mas continuou a piscar. Estava tão cansada que simplesmente considerou que era algum problema elétrico, que ela veria depois. Apagou a luz e foi dormir.

Mal tinha pegado no sono quando ouviu um ruído bem baixinho, irreconhecível. Despertou, mas não levantou da cama. Apenas apurou a audição, tentando identificar de onde vinha. De repente, se deu conta de que o rádio estava ligado. O ruído vinha dali, como se alguém estivesse tentando sintonizar em alguma estação. Aquele chiado, vozes cortadas, zumbidos. E foi ficando mais alto, mais alto, e as vozes não pareciam músicas ou locutores comuns. Não pareciam falar português. Ela pulou da cama e desligou o rádio.

E então um calafrio correu por sua espinha. A voz que acabara de escutar e o modo como falava, a “língua” que falava... ela já tinha ouvido isso antes! Então lembrou.

Cerca de dois meses antes um paciente tinha dado entrada no hospital. Ninguém sabia de onde tinha vindo ou como chegara ali. Apenas apareceu na porta. Era um homem branco, por volta dos quarenta anos, sem nenhuma identificação. Não usava roupas e estava em aparente estado de coma. Tinha a pele pintada com o próprio sangue, formando uns símbolos que ninguém conseguiu identificar e algumas feridas pelo corpo que pareciam ter sido causadas por uma faca ou punhal. Apesar de parecer estar em coma, suas ondas cerebrais não condiziam com o esperado, estavam completamente anormais, de um modo que ela nunca tinha visto. E, vez ou outra, ele revirava os olhos e dizia coisas ininteligíveis, numa voz sussurrada e rouca. A mesma voz que agora vinha do rádio.

O paciente ficou internado durante um mês sem que ninguém o identificasse ou conseguisse apresentar um diagnóstico plausível. Ela foi chamada para trabalhar no caso e se dedicou com afinco. Teve pena daquele homem que parecia preso no próprio corpo. Passava um bom tempo em seu quarto, observando. Acabou por criar um laço com ele, uma vontade de ajudá-lo, de vê-lo livre e vivendo outra vez.

E então ele morreu. Seu coração simplesmente não bateu mais um dia. Não conseguiram fazer nada para trazê-lo de volta. Foi como se ele “desligasse”. E isso também ficou sem explicação.

Agora ela se dava conta de que seu tormento começou coincidentemente após a morte daquele homem.

Então era isso: estava ficando maluca! Não suportou perder um paciente sem fazer ideia do que aconteceu com ele e do que o levou à morte. Não suportou ser incapaz de ajudar alguém que lhe pareceu tão desprotegido e indefeso. Não conseguiu lidar com o fato de que nunca saberiam quem ele era, nunca poderiam avisar à família. Ele não teria um enterro decente e, agora ela percebia, se sentia culpada. Porque ela era uma excelente médica e todos sempre podiam contar com ela. Mas não agora. Não dessa vez.

Estava sentada na cama, olhos vidrados, a mão ainda sobre o botão do rádio, pensando em tudo isso. Respirou aliviada e foi até a cozinha para beber um copo d’água. Amanhã seria um novo dia.

Mas então o relógio marcou três horas. E ela ouviu. Era o som de uma pessoa respirando. Bem perto... bem perto. E tudo ficou escuro como se sombras a envolvessem. O copo caiu no chão e quebrou e ela não conseguiu ter a reação de pegá-lo. Estava paralisada e sentia o calor da respiração em sua nuca. Alguém estava ali!

Tentou rezar, mas seus pensamentos pareciam embaralhados. Seria o pavor? Sentiu os olhos virarem para cima, bem pra cima. Então veio uma dor que parecia invadi-la pelas costas e entrar pelo seu corpo, algo a invadindo e rasgando. Tentou rezar, mas não conseguiu. Tentou gritar, mas não tinha voz.

Então viu sua mão abrindo a gaveta e pegando uma faca. Meu Deus, o que ela iria fazer? A cada segundo ela descobria uma nova intensidade de pavor.

Viu sua mão segurar aquela faca afiada e cortar sua pele. Alguns cortes não muito profundos no braço esquerdo, o sangue escorrendo. Agora ela queria simplesmente desmaiar. Perder a consciência e então acordar desse pesadelo. Sim, só poderia ser um pesadelo e ela iria acordar a qualquer momento!

A mão ergueu a faca e fez um corte no seu peito. As sombras já a envolviam completamente. E aquela nuvem densa e negra invadiu sua mente. E vozes, muitas vozes, sussurravam ao seu redor antes que ela apagasse completamente.

No dia seguinte, os colegas estranharam sua ausência no trabalho. Ligaram para sua casa, para o celular, mas ninguém atendia. Preocupados, os três amigos mais próximos foram até o seu prédio. O porteiro garantiu que ela não havia saído e, como já eram conhecidos, os deixou subir. Tocaram a campainha, bateram na porta, mas o silêncio no apartamento era absoluto.

Por sorte, uma das amigas tinha a chave e, considerando a urgência da situação, já que ela nunca faltara um dia de trabalho sem avisar, eles abriram a porta.

A casa estava quieta e escura. Entraram chamando por ela, sem resposta. Foram até o quarto, banheiro, e nada. Então entraram na cozinha.

Deitada de costas no chão, sem roupas, pálida, ali estava ela. O corpo marcado por cortes a faca e símbolos desenhados em sangue. O estado aparente de coma. Então, abrindo os olhos vidrados e completamente negros, ela sussurrou palavras ininteligíveis, numa língua desconhecida, com uma voz rouca e carregada de algo que parecia raiva. O rosto contorcido em uma expressão assustadora pelo breve momento de seu discurso. O olhar direcionado para a melhor amiga, aquela que tinha a chave do apartamento e que era a pessoa mais próxima entre todos os que conhecia.

Seus olhos fecharam, o rosto voltou ao normal, e ela foi levada assim para o hospital.

Embora já tivessem visto algo parecido antes, nenhum deles ousou comentar.

 

 

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