Sentia calafrios. Sentia um frio congelante mesmo quando o
sol brilhava lá no céu. Nessas horas, ficava com medo. Não acreditava no
sobrenatural, mas não controlava o medo quando sentia algo que parecia uma mão
tocando seus cabelos muito de leve. Quem controlaria?
Começou a ter medo de escuro. Que infantil! Mas no escuro a
presença era mais forte. Quando apagava as luzes da casa e ia se deitar, quase
podia sentir alguém a acompanhando e deitando na cama com ela. Quase ouvia os
passos, a respiração. Sentia a respiração na sua nuca!
Achou que estava ficando louca, mas não teve coragem de
procurar ajuda. Era médica, respeitada como uma autoridade no campo da
neurologia. Era professora de uma grande universidade, autora de diversas
teses. Como poderia ser louca?
Achou que era o excesso de trabalho. O estresse de manter um
consultório, algumas turmas na faculdade e ainda ser a neurologista chefe e acompanhar
residentes num hospital. Andava dormindo pouco, comendo pouco. Era isso!
Mas, conforme o tempo passava, mesmo tentando não dar
importância àquilo, a presença ficava mais forte. Ficava palpável.
Então começou. Primeiro foi a luz piscando. Trocou a
lâmpada, claro! Mas continuou a piscar. Estava tão cansada que simplesmente
considerou que era algum problema elétrico, que ela veria depois. Apagou a luz
e foi dormir.
Mal tinha pegado no sono quando ouviu um ruído bem baixinho,
irreconhecível. Despertou, mas não levantou da cama. Apenas apurou a audição,
tentando identificar de onde vinha. De repente, se deu conta de que o rádio
estava ligado. O ruído vinha dali, como se alguém estivesse tentando sintonizar
em alguma estação. Aquele chiado, vozes cortadas, zumbidos. E foi ficando mais
alto, mais alto, e as vozes não pareciam músicas ou locutores comuns. Não
pareciam falar português. Ela pulou da cama e desligou o rádio.
E então um calafrio correu por sua espinha. A voz que
acabara de escutar e o modo como falava, a “língua” que falava... ela já tinha
ouvido isso antes! Então lembrou.
Cerca de dois meses antes um paciente tinha dado entrada no
hospital. Ninguém sabia de onde tinha vindo ou como chegara ali. Apenas
apareceu na porta. Era um homem branco, por volta dos quarenta anos, sem
nenhuma identificação. Não usava roupas e estava em aparente estado de coma. Tinha
a pele pintada com o próprio sangue, formando uns símbolos que ninguém conseguiu
identificar e algumas feridas pelo corpo que pareciam ter sido causadas por uma
faca ou punhal. Apesar de parecer estar em coma, suas ondas cerebrais não
condiziam com o esperado, estavam completamente anormais, de um modo que ela
nunca tinha visto. E, vez ou outra, ele revirava os olhos e dizia coisas
ininteligíveis, numa voz sussurrada e rouca. A mesma voz que agora vinha do rádio.
O paciente ficou internado durante um mês sem que ninguém o
identificasse ou conseguisse apresentar um diagnóstico plausível. Ela foi
chamada para trabalhar no caso e se dedicou com afinco. Teve pena daquele homem
que parecia preso no próprio corpo. Passava um bom tempo em seu quarto,
observando. Acabou por criar um laço com ele, uma vontade de ajudá-lo, de vê-lo
livre e vivendo outra vez.
E então ele morreu. Seu coração simplesmente não bateu mais
um dia. Não conseguiram fazer nada para trazê-lo de volta. Foi como se ele “desligasse”.
E isso também ficou sem explicação.
Agora ela se dava conta de que seu tormento começou
coincidentemente após a morte daquele homem.
Então era isso: estava ficando maluca! Não suportou perder
um paciente sem fazer ideia do que aconteceu com ele e do que o levou à morte. Não
suportou ser incapaz de ajudar alguém que lhe pareceu tão desprotegido e
indefeso. Não conseguiu lidar com o fato de que nunca saberiam quem ele era,
nunca poderiam avisar à família. Ele não teria um enterro decente e, agora ela
percebia, se sentia culpada. Porque ela era uma excelente médica e todos sempre
podiam contar com ela. Mas não agora. Não dessa vez.
Estava sentada na cama, olhos vidrados, a mão ainda sobre o
botão do rádio, pensando em tudo isso. Respirou aliviada e foi até a cozinha
para beber um copo d’água. Amanhã seria um novo dia.
Mas então o relógio marcou três horas. E ela ouviu. Era o
som de uma pessoa respirando. Bem perto... bem perto. E tudo ficou escuro como
se sombras a envolvessem. O copo caiu no chão e quebrou e ela não conseguiu ter
a reação de pegá-lo. Estava paralisada e sentia o calor da respiração em sua
nuca. Alguém estava ali!
Tentou rezar, mas seus pensamentos pareciam embaralhados. Seria
o pavor? Sentiu os olhos virarem para cima, bem pra cima. Então veio uma dor
que parecia invadi-la pelas costas e entrar pelo seu corpo, algo a invadindo e
rasgando. Tentou rezar, mas não conseguiu. Tentou gritar, mas não tinha voz.
Então viu sua mão abrindo a gaveta e pegando uma faca. Meu
Deus, o que ela iria fazer? A cada segundo ela descobria uma nova intensidade
de pavor.
Viu sua mão segurar aquela faca afiada e cortar sua pele. Alguns
cortes não muito profundos no braço esquerdo, o sangue escorrendo. Agora ela
queria simplesmente desmaiar. Perder a consciência e então acordar desse
pesadelo. Sim, só poderia ser um pesadelo e ela iria acordar a qualquer
momento!
A mão ergueu a faca e fez um corte no seu peito. As sombras
já a envolviam completamente. E aquela nuvem densa e negra invadiu sua mente. E
vozes, muitas vozes, sussurravam ao seu redor antes que ela apagasse
completamente.
No dia seguinte, os colegas estranharam sua ausência no
trabalho. Ligaram para sua casa, para o celular, mas ninguém atendia. Preocupados,
os três amigos mais próximos foram até o seu prédio. O porteiro garantiu que
ela não havia saído e, como já eram conhecidos, os deixou subir. Tocaram a
campainha, bateram na porta, mas o silêncio no apartamento era absoluto.
Por sorte, uma das amigas tinha a chave e, considerando a
urgência da situação, já que ela nunca faltara um dia de trabalho sem avisar,
eles abriram a porta.
A casa estava quieta e escura. Entraram chamando por ela,
sem resposta. Foram até o quarto, banheiro, e nada. Então entraram na cozinha.
Deitada de costas no chão, sem roupas, pálida, ali estava
ela. O corpo marcado por cortes a faca e símbolos desenhados em sangue. O
estado aparente de coma. Então, abrindo os olhos vidrados e completamente negros,
ela sussurrou palavras ininteligíveis, numa língua desconhecida, com uma voz
rouca e carregada de algo que parecia raiva. O rosto contorcido em uma expressão
assustadora pelo breve momento de seu discurso. O olhar direcionado para a
melhor amiga, aquela que tinha a chave do apartamento e que era a pessoa mais
próxima entre todos os que conhecia.
Seus olhos fecharam, o rosto voltou ao normal, e ela foi
levada assim para o hospital.
Embora já tivessem visto algo parecido antes, nenhum deles
ousou comentar.
Nem ouso comentar.
ResponderExcluirmedo! medo! medo!
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