sábado, 21 de julho de 2012

O Presente

Estavam casados há oito anos e, há pelo menos cinco, tentavam desesperadamente ter um filho. Eram apaixonados e felizes, tinham conquistado muitas coisas juntos, e queriam mais. Queriam dar mais um passo, queriam concretizar e eternizar seu amor numa vida que surgiria de sua união.
 
Apesar do tempo, ainda viviam em clima de lua-de-mel. Mas a frustração começava a tomar conta de seus corações depois de tantas tentativas fracassadas. Buscaram ajuda de vários especialistas, fizeram os mais modernos tratamentos, e nada acontecia... Começam a cogitar a adoção, mas queriam tanto um fruto gerado de seu amor...
 
Então, depois de tanto tempo, decidiram que aquele seria o último ano. Fariam de tudo durante aqueles doze meses. Caso não desse certo, logo em janeiro procurariam entrar na fila de adoção. Estava combinado.
 
E foi logo no começo do ano, num dia ensolarado, quando passeavam por um parque, que aconteceu o que parecia ser um milagre. Passaram por uma cigana, dessas que ficam perambulando por lugares públicos, à procura de alguém que aceite seus serviços. Como a maior parte das pessoas, sempre desviavam. Mas a cigana foi mais rápida e segurou a mão dela. O marido olhou, em tom de repreensão, mas a cigana se apressou em declarar que eles queriam muito um filho, mas todas as tentativas tinham fracassado. Disse que tinha a solução para eles.
 
O casal trocou um olhar e ambos perceberam aquilo como um sinal divino. Em outras circunstâncias, não teriam dado atenção. Mas o desespero tomava conta de seus corações e eles precisavam de algo no que acreditar. Pararam para ouvir a cigana.
 
A mulher parecia idosa, usava um traje bastante tradicional, com lenços, colares, pulseiras e vários anéis. Seu olhar parecia cansado e sábio. Olhos de quem já tinha vivido muito e visto muita coisa. Algo nela despertava confiança e logo sentiram-se totalmente seduzidos pela senhora que parecia enviada para acabar com seus problemas.
 
Depois de segurar as mãos do casal por um tempo que lhes pareceu um tanto longo, a cigana examinou suas linhas e tocou suas testas. Então, entregou-lhes um cartão que continha um nome e um endereço. Disse-lhes que era seu mestre, um homem muito sábio, uma espécie de mago, capaz de preparar poções e rituais para as mais diversas finalidades. Ele não tinha telefone e não necessitavam marcar consulta. Bastava aparecer no endereço do cartão e Shmael os atenderia.
 
Continuaram o passeio evitando o assunto, mas logo o dia ensolarado perdeu a graça e tudo o que queriam era discutir sobre o que tinha acabado de acontecer. Voltaram pra casa e só então começaram a digerir as informações. Era inegável que a mulher tinha algum dom. Acertou tudo o que se propôs a adivinhar. Transmitia confiança e bondade. Mas tudo era estranho demais para ser verdade.
 
- E se for Deus atendendo às nossas preces? E se for assim que Ele trabalha, através de pessoas que estão por aí, ao nosso alcance? – ela perguntou, com lágrimas nos olhos.
 
Ele não estava convencido, mas não queria contrariar sua esposa, já tão fragilizada. Combinaram que, no próximo sábado, logo pela manhã, iriam ao tal endereço. Afinal, não custava arriscar.
 
A semana demorou a passar. Ambos estavam mergulhados em ansiedade e mal conseguiam se concentrar nos seus trabalhos e afazeres cotidianos. Então, sábado chegou. Ela foi a primeira a acordar. Mal dormiu, para falar a verdade. Logo em seguida ele acordou e lhe ofereceu um sorriso. Tomaram o café da manhã em silêncio, se arrumaram e seguiram para o endereço do cartão, ao encontro do tal Shmael, sua última esperança.
 
O endereço era em um bairro afastado do centro, a caminho da região mais “rural” da cidade. Em determinado ponto, precisaram sair da rodovia principal e pegar uma estrada de terra batida. No final da estrada, para sua surpresa, erguia-se uma enorme mansão.
 
À distância, a casa parecia ter uns três andares e centenas de metros quadrados. Ficava atrás de um pesado portão de ferro. Estava em perfeitas condições e não se encaixava naquela vizinhança simples, por assim dizer.
 
Seguiram de carro até o portão, onde ele saltou. Encontrou uma espécie de interfone no portão e apertou o botão. Uma voz cavernosa perguntou o que desejava. Ele se apresentou e a voz respondeu que Shmael os esperava, que o portão seria aberto para que seguissem de carro até a entrada principal da casa. E assim fizeram.
 
Quando saltaram do carro, um homem já os esperava na porta. Era alto, magro, usava um terno preto todo trabalhado com bordados e brilhos. Os cabelos lisos e negros estavam presos numa trança e um lenço estampado em tons de roxo e vermelho caía sobre seus ombros. Seu olhar era penetrante e, ao mesmo tempo, parecia vazio. Era difícil determinar sua idade. Ele sorria.
 
- Olá. Sou Shmael. Carmita me falou sobre vocês e creio ter a solução. Entrem e, por favor, sintam-se em casa.
 
Algo naquela voz era assustador e sedutor ao mesmo tempo. Sentiam-se como que hipnotizados. Entreolharam-se desconfiados num primeiro momento, mas logo deixaram-se envolver pelo encanto do casarão e atravessaram a porta de entrada.
 
Shmael os guiou até uma enorme e luxuosa sala de estar, onde foram convidados a sentar. O mordomo apareceu oferecendo bebidas, que eles prontamente aceitaram. Então, depois de repetir a história que a cigana lhe contara, com sua voz muito peculiar, aquele estranho homem pediu que contassem sua versão dos fatos.
 
Carmita havia acertado tudo e só faltavam alguns detalhes que realmente não tinham muita importância. Mesmo assim, repassaram toda a sua história, desde o namoro. Todos os desejos e planos, tentativas e fracassos. Shmael sorria ao lhes dizer que sim, tinha uma solução. Podia garantir que ela sairia dali grávida, mas precisava que confiassem nele. Totalmente.
 
Pediram um tempo para pensar e foram deixados a sós. Estavam inseguros, mas não queriam perder nenhuma chance. Trocaram um demorado beijo e decidiram que estavam prontos a arriscar qualquer coisa.
 
Após um tempo, Shmael apareceu na sala. Disseram que estavam prontos e ele pediu que o seguissem até o andar superior.
 
Lá, foram levados cada um para uma suíte, acompanhados por pessoas vestindo uma longa capa com capuz. Pediram que tirassem as roupas e entrassem numa imensa banheira, cheia de pétalas de flores e cercada por velas. Após algum tempo, foram retirados do banho e untados com um óleo de perfume adocicado. Receberam massagens daquelas pessoas, por todo o corpo e depois foi dado uma espécie de roupão para cada um. Ambos estavam estranhando aquela experiência e estavam inseguros, pois não sabiam o que estava acontecendo no outro quarto. Mas a música suave que vinha de algum lugar indecifrável envolvia suas mentes e foram relaxando cada vez mais.
 
Antes de poderem sair de seus respectivos quartos, receberam uma taça cheia de um líquido, que foram orientados a beber, sem deixar sobrar nada. O copo dele continha algo parecido com água, mas com um gosto diferente. Sentiu-se meio tonto e desorientado após beber, mas ao mesmo tempo, excitado. O copo dela continha um líquido mais viscoso e era doce. Também se sentiu desorientada e excitada, mas sentiu algo diferente. Um calor invadiu seu corpo e, por alguns momentos, ela perdeu a memória.
 
Então, finalmente, estavam prontos para o reencontro. Os criados encapuzados os uniram no longo corredor e pediram que dessem as mãos. Assim, seguiram até a última porta, coberta de símbolos dourados que, naquele momento, nenhum dos dois conseguiu decifrar.
 
O aposento era amplo, parecia coberto de mármore escuro e tinha forma arredondada. No centro, havia uma elevação e, sobre ela, uma espécie de cama com dossel vermelho. Nas paredes, havia tochas presas, velas enfeitavam o chão, ao redor de todo o lugar, e várias daquelas pessoas encapuzadas entoavam cânticos, paradas como estátuas ali dentro.
 
Shmael surgiu no centro do aposento e os convidou a entrar. Nenhum dos dois sentia-se em condições de avaliar a estranheza do que estava diante de seus olhos. Àquela altura, ambos acreditavam estar num sonho. Sentiam-se leves, prestes a flutuar, e estavam prontos a obedecer qualquer ordem vinda daquela voz distante e peculiar, quase uma melodia aos seus ouvidos.
 
Entraram, seguiram para a cama e, alheios aos estranhos presentes no aposento, fizeram amor. Imediatamente ela pode sentir que estava grávida. Algo tinha mudado em seu organismo, ela sabia. Dormiram abraçados.
 
Muitas horas depois, cada um acordou no aposento onde tinham sido preparados anteriormente. Já vestiam suas próprias roupas. Tinham a sensação de ter dormido por várias horas, não conseguiam lembrar muito bem dos detalhes, não entendiam bem aquilo ali, mas a sensação de ter valido a pena os dominava.
 
Ao mesmo tempo em que um criado abria a porta do quarto dele, outro abria a porta dela, para ajudá-los a levantar, e encaminhá-los até a sala de estar, onde Shmael os aguardava.
 
- Quanto devemos ao senhor? – ele perguntou, certo de que teria de pagar uma fortuna.
 
- Por enquanto, nada – respondeu Shmael. – Vocês são um casal muito especial, que me procurou precisando muito de ajuda. Se tudo sair realmente conforme os meus planos, este filho será meu presente para vocês.
 
Ele ainda insistiu que Shmael aceitasse, pelo menos, o valor relativo aos gastos que teve. Mas lhes foi dito que não se preocupassem e fossem felizes. Com esta benção, partiram para o carro, para a “vida normal” outra vez.
 
No dia seguinte o teste de gravidez confirmou o que ela já sabia. E, para surpresa do casal, desta vez o bebê sobreviveu. A gravidez transcorreu sem problemas e eles experimentaram uma felicidade que havia muito não sentiam.
 
Foi só durante a última ultrassonografia antes do parto que experimentaram mais uma vez a apreensão: aparentemente o bebê tinha alguma má formação no crânio, que fazia com que seu formato fosse um pouco diferente do normal mas, o médico garantiu, não era nada grave nem nada que afetaria seu desenvolvimento. Talvez até fosse naturalmente corrigido com o tempo, afinal parecia se tratar de um problema puramente estético. Acreditaram que isso era pouco para estragar sua felicidade. Teriam um filho, afinal, e nada poderia diminuir sua alegria.
 
Então, chegou o dia do parto. A bolsa estourou e eles correram para a maternidade, radiantes. Ela foi preparada e levada para a sala de cirurgia. Ele a acompanhou, câmera na mão e um sorriso enorme estampado no rosto. Médico, enfermeiros, assistentes, anestesista, todos estavam a postos. Tudo pronto para o que seria o dia mais feliz da vida deles.
 
A cabecinha do bebê coroou, ela fez força, empurrou, o médico delicadamente puxou e ele filmou quando aquela criaturinha saiu do ventre da sua esposa, coberta de placenta, sangue e tudo aquilo que um parto envolve. Estava tudo perfeito.
 
Foi só quando o bebê foi colocado ao lado da mãe, depois de uma rápida limpeza, que eles perceberam: além do cordão umbilical, um outro “fio” saía da criança, mais precisamente da altura de seu cóccix. A pequena deformação no seu crânio, na verdade, eram dois pequenos chifres. Seus olhos eram vermelhos como o sangue e fitavam a mãe com uma intensidade da qual bebês não são capazes. Quando abriu a pequena boquinha, notaram que já tinha dentes, bastante afiados.
 
Chocados, todos ficaram paralisados. O pai deixou cair a câmera, o médico largou a tesoura, os enfermeiros afastaram-se. Em questão de segundos, onde antes havia o rosto da mãe, agora só se via uma poça de sangue.

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