sexta-feira, 13 de julho de 2012

Pata de Bode

Nasci e cresci numa pequena cidade do interior. Ao longo da minha infância, passava as noites em volta da fogueira, no quintal de casa, com as outras crianças e os adultos da família e da vizinhança contando histórias e lendas, tentando nos assustar.
 
Sempre fui muito arteiro, entrava mato adentro no meio da noite para pregar peças nos meus amigos, roubar frutas na vizinhança, ou simplesmente para passear mesmo. O gostinho de perigo e da proibição me atraía. Adorava desafiar meus pais, fingir que estava dormindo e sair depois que eles se deitavam. Coisas de criança.
 
Uma das lendas que nos contavam, dizia que existia um ser maligno com patas de bode e corpo de homem, que devorava as crianças arteiras à noite. Confesso que nos primeiros anos de minha infância eu tinha medo. Depois, fui ficando curioso e cheguei a tentar montar armadilhas para o Pata de Bode com meus primos e amigos. Nunca o pegamos nem fomos pegos por ele e aquela lenda foi perdendo o sentido com o tempo. Assumi que era apenas um meio de tentar controlar as crianças.
 
Aos dezoito anos deixei o interior para estudar e trabalhar na cidade grande. Minhas preocupações e medos mudaram, as histórias e lendas também, e nunca mais pensei no Pata de Bode.

Até que, trinta anos após ter deixado a casa de meus pais, voltei ao interior pela primeira vez, para o velório de minha mãe. Ao longo desse tempo, sempre foram meus pais que vieram me visitar na cidade, e eu nunca mais tinha posto os pés na minha terra natal.

Ainda na estrada que levava à minha antiga cidade, fui arrebatado por uma emoção estranha. Talvez fosse a tristeza por saber que não encontraria minha mãe ao chegar. Talvez fosse a saudade dos velhos tempos. Talvez fosse um certo arrependimento por ter deixado aquilo tudo pra trás com tanta facilidade. Mas havia algo me incomodando bastante, mesmo que eu não soubesse exatamente o que era.

Fiquei hospedado na minha antiga casa, no meu antigo quarto, que ainda conservava o mesmo aspecto de quando o deixei, a não ser por uma ou outra coisa que tinha sido armazenada ali por falta de espaço no resto da casa. Acho que minha mãe sempre esperou que eu voltasse um dia, e acabei voltando tarde demais.

O velório durou o dia inteiro e o enterro foi ao entardecer. Revi vários parentes e amigos de infância, pessoas que tinha guardado no fundo da memória, pra não dizer “esquecido”, com minha nova vida, minha nova realidade.

À noite, sem conseguir dormir, resolvi dar uma volta pela vizinhança, como fazia nos velhos tempos. Andei pelo quintal, agora muito mais cheio de mato, bem malcuidado, abandonado. Meu pai não tinha mais forças para trabalhar e tenho a impressão de que a doença de minha mãe drenou o que restava dele.

Sentindo-me cada vez pior, vaguei pelo matagal que crescia nos fundos da casa, indo em direção ao bosque. Ali, sozinho no meio da noite escura, lembrei das fogueiras, das histórias, das lendas. Pensei que não fui um bom menino, um bom filho, e lembrei do Pata de Bode pela primeira vez em anos. E, para minha surpresa, senti medo. Acho que tinha perdido o costume da escuridão e da solidão absolutas. Na cidade sempre havia uma luz, uma TV ligada, alguém por perto, nem que fosse através da internet.
 
Após um tempo, tive a impressão de estar sendo observado, pensei ter ouvido uma respiração. Por um momento, posso dizer que fiquei apavorado. Então, como homem adulto que era, parei, refleti, e concluí que estava cansado pela viagem e abalado pelos acontecimentos. Estava imaginando coisas e precisava descansar. Voltei para casa e tratei de dormir.

O dia seguinte transcorreu sem grandes acontecimentos. Aproveitei pra rever todos, conversar, tentar me redimir pelo tempo que passei afastado. Fui bem tratado por todos e me senti surpreendentemente feliz, apesar de tudo. Parecia que as coisas iriam ficar bem, afinal.

O céu escureceu, as estrelas brilharam e me lembrei do que se passou na noite anterior. Confesso que, apesar das minhas explicações científicas, fiquei intrigado com a sensação que tive. É lógico que, como morador de cidade grande, a primeira coisa que me passou pela cabeça foi que alguém poderia estar rondando a casa de meus pais, a fim de roubar, talvez, as jóias de família que minha mãe guardava. Achei que valia uma investigação e saí pela noite outra vez.

Muito mais bem equipado desta vez, levei uma lanterna e um cabo de enxada, a única “arma” que encontrei na casa. Olhei toda a extensão do quintal, tentando enxergar o máximo que podia, com a fraca luz da lanterna, e não vi nada que me chamasse a atenção. A curiosidade falou mais alto e, além do mais, eu estava acostumado a dormir de madrugada e não às dez horas da noite! Queria um pouco de emoção. Entrei no bosque.

Novamente tive a sensação de estar sendo observado. Sabe quando você consegue sentir o calor do olhar de alguém na sua pele? Eu sentia isso, como se alguém me olhasse fixamente, mas não conseguia ver nada naquela escuridão. Tive a impressão de ouvir um farfalhar no mato atrás de mim e senti meus pelos crisparem. Tentei mirar a lanterna na direção do barulho, mas parecia estar tudo completamente deserto. Desisti depois de algum tempo, um pouco por desapontamento, um pouco por medo. Não sei dizer qual falou mais alto e me senti um tanto idiota por ser um homem de cinqüenta anos com medo de histórias de criança, mas decidi voltar pra casa e dormir mais uma vez.
 
Eu deveria partir no terceiro dia, mas decidi ficar mais um pouco. Meu pai estava muito abatido e era nítido que precisava de mim. Achei que poderia, de alguma maneira, compensar os anos que passei afastado. Achei que devia isso à minha mãe, e decidi ficar até o fim da semana.

Na terceira noite, movido por uma curiosidade inexplicável, voltei ao bosque. Tinha chovido um pouco durante o dia e a terra estava fofa. Achei que procurar por pegadas seria um bom começo para a minha investigação.

Estava agachado no chão, analisando umas pegadas muito estranhas que encontrei, quando voltei a sentir o peso daquele olhar sobre mim. Desta vez, ignorei a sensação e continuei a olhar as pegadas, que não eram humanas. Embora fossem obviamente de um bípede, pareciam mais pegadas de cavalo ou outro animal com um formato arredondado de pata.

Não conseguia parar de pensar em todas as histórias que escutei quando criança. Tentei deixar de lado os pensamentos tolos, mas o farfalhar no mato me assustou e virei depressa, apontando a lanterna na direção. Tive a impressão de ver um par de olhos vermelhos. Sentindo-me como que hipnotizado, contrariei o bom senso e caminhei na direção dos olhos, apontando a lanterna.

Ouvi um som estranho um pouco mais adiante. Parecia um relinchar, mas definitivamente não era um cavalo. Ainda estava a uma certa distância da mata fechada quando consegui visualizar o que parecia ser um par de pernas cobertas de pelo de animal. Um pequeno vislumbre me fez pensar num bode e confesso que meu sangue congelou.

Fiquei paralisado até que enxerguei os dois olhos vermelhos me fitando à distância e o que parecia ser parte de um rosto, aparentemente humanóide, mas áspero, vincado, deformado. Neste momento, decidi que precisava correr.

Corri sem parar, ouvindo aquele galopar logo atrás de mim, a respiração pesada, raivosa, e um cheiro horrível se espalhando pelo ar. Alguns metros depois, tropecei e caí. Mal percebi a sombra por cima de mim, quando reuni toda a minha coragem e força para chutar aquela criatura. Só via os olhos vermelhos me fitando de um jeito sinistro. O pânico não me deixou ver mais nada e, assim que a criatura caiu com meu chute, levantei depressa e não parei até chegar ao carro. Por sorte, estava carregando a carteira e as chaves no bolso. Entrei, dei a partida e peguei a estrada sem olhar para trás. Quando chegasse à cidade, ligaria para o meu pai explicando a partida urgente, mas não ficaria mais nem um minuto ali, com o Pata de Bode atrás de mim.

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